A Salomé é um furacão. Combativa, faz da moda sustentável uma bandeira pessoal, lutando todos os dias por informar, sensibilizar e mudar comportamentos. Quer da indústria, quer de todos nós, enquanto consumidores. É a coordenadora do Fashion Revolution Portugal, um movimento que surgiu depois da tragédia do Rana Plaza. Uma das ações mais mediáticas que desenvolveram foi a hastag Who made my clothes? através da qual querem mostrar as pessoas que fazem a nossa roupa, chamando a atenção para as condições, muitas vezes desumanas, em que trabalham.
Para nós foi super importante ter o testemunho da Salomé nesta rubrica. E ela oferece uma perspetiva diferente, de quem conhece a indústria por dentro e os seus muitos desafios. Não temos dúvidas que o seu testemunho vai fazer pensar.
Salomé, Muito obrigada por teres aceite o nosso convite.
O meu guarda-roupa é uma biblioteca de histórias. E quase todas essas histórias são de mulheres da minha vida. Gosto de adquirir a minha roupa como se fossem livros: herdados, trocados, usados, lidos e relidos, riscados e com pontas dobradas nos versos mais bonitos.
Ter uma peça em segunda mão dá-nos este privilégio de honrar a história e identidade de quem a usou, e recebê-la no nosso íntimo. Mas o que mais romantizo é os capítulos que adiciono.
Por exemplo, este casaco que levei intencionalmente à manifestação da Rede 8 de Março deve ter cerca de 50 anos. Pelo corte, estilo da gola e mangas raglan, deve ter sido confeccionado no início dos anos 70 e provavelmente viveu na Argentina até chegar à venda de garagem onde o encontrei, nos subúrbios da capital. Se assim for, atravessou a ditadura militar de Videla. Imaginem.
E em 2007, puxei-o por um braço no meio de um monte de trapos e paguei 35 pesos por ele. Abrigou-me naquele que foi um Inverno revelação: não só para mim porque foi quando saí de casa dos meus pais aos 22 anos, mas também para a cidade de Buenos Aires, onde nevou pela primeira vez em 90 anos.

Depois de uma década de muitos eventos, decidi começar a premiá-lo com galões.
Em 2018, cosi-lhe dois apliques de ombro de jaqueta de toureiro que comprei numa feira de antiguidades em Estremoz; um ano depois, mais um pavão e uma baleia que brilha no escuro feita por um patch artist de Connecticut, e por fim – o meu preferido – um cacto de crochet feito pela Teresa Carvalheira (um dos grandes pilares do Fashion Revolution Portugal, companheira de manifs e uma activista que todos os dias me inspira). Esse pu-lo ao peito, cheia de orgulho. Acho que tudo junto fez deste casaco a peça mais rica que tenho, não necessariamente a mais cara.
Ornamentar o nosso corpo é das artes mais antigas que o ser humano tem o poder de cultivar e exaltar.
Não gosto muito de gabar o meu comportamento de consumo porque sinto que vestir é um processo íntimo sobre identidade e acho que cada pessoa deve traçar os seus desafios pessoais pela sustentabilidade. Preocupa-me a obsessão com que o movimento zero waste e o minimalismo foram subvertidos pela cultura de consumo para um espectro individual.
Hoje em dia prefiro falar de activismo do que de consumo consciente, que não passa tanto por quantificar o que cada um está a fazer em sua casa, mas sim por conceber o quão poderosos somos se agirmos colectivamente (numa manifestação, em eleições, ou nas nossas comunidades online, por exemplo). Temos menos de uma década para atingir a neutralidade carbónica, e a indústria têxtil – responsável por 4% do total de emissões – tem de sofrer profundas reformas sistémicas (legais e políticas), que se resolvem com mobilizações de maior impacto.
Se há algo que podemos fazer em nossas casas é reconhecer esse poder e identidade tão próprios, apaixonarmo-nos, cuidarmos, ornamentarmos e assim honrarmos a roupa que fez e que faz parte das nossas vidas. Se quiseres saber como o podes fazer, participa no Fashion Revolution Week de 19 a 25 de Abril de 2021, através das redes sociais do Fashion Revolution Portugal.
Salomé Areias, Fashion Revolution Portugal